Transparência no Terceiro Setor: reflexões e orientações a partir do ordenamento jurídico e auditoria do TCE/SP

OSC Legal Instituto
7 min readSep 2, 2020

Por Janaina Rodrigues¹, Lucas Seara² e Rozangela Borota Teixeira³

Temos visto nos últimos anos o aumento de exigências para que a Administração Pública, bem como as pessoas jurídicas que com essa se relacionam, adotem posturas mais transparentes, por meio de procedimentos eficientes em dar publicidade às ações e despesas realizadas com recursos públicos. Tal tendência segue o quanto disposto na Constituição Federal de 1988 que, no parágrafo único do art. 70, determina a prestação de contas da utilização, arrecadação, guarda, gerenciamento ou administração de dinheiros, bens e valores públicos.

A Lei de Responsabilidade Fiscal⁴, por exemplo, foi um grande marco sobre a Transparência de Gestão Fiscal na Administração Pública e no incentivo da participação popular na gestão pública.

Contudo, sem dúvida, o direito à informação, consagrado em nossa Constituição, mudou de paradigma em 2011 com a publicação da Lei de Acesso à Informação - LAI (Lei nº 12.527/2011)⁵. Esta normativa prevê procedimentos que tornaram a publicidade da informação regra na Administração Pública.

Importante destacar que a LAI repercute, inclusive, na seara privada, aplicando-se, no que é possível, às entidades do Terceiro Setor que recebem recursos públicos para a realização de ações de interesse público.

O decreto regulamentador da LAI (Decreto nº 7.724/2012)⁶, na linha da transparência, prevê a necessidade, como regra geral, da organização sem fins lucrativos e receptora de recurso público dar publicidade em sítio na Internet da entidade e em quadro de avisos de amplo acesso público em sua sede, das seguintes informações: o estatuto social, a relação nominal dos dirigentes, cópia integral das parcerias realizadas com o poder público federal e os relatórios finais de prestação de contas.

Ocorre que a LAI não é pioneira quando o assunto é transparência no Terceiro Setor. Existe um universo de normativas, desde os anos 90, tal como a Lei das OSCIP’s (Lei nº 9.790/1990)⁷ e das OS’s (Lei nº 9. 637/1998)⁸, que perpassa sobre o tema: ambas preveem a necessidade da entidade disponibilizar na página de internet regulamento de contratação de obras e serviços.

Logo, a depender da modalidade de interação da Organização com o Poder Público poderá haver diferentes tipos de obrigações sobre publicidade a serem observados, o que muitas vezes dificulta a compreensão e, por óbvio, o cumprimento.

A Lei do CEBAS (Lei nº 12.101/2009)⁹, por exemplo, exige que a entidade beneficente de assistência social mantenha, em local visível ao público, placa indicativa contendo informações sobre a sua condição de beneficente e sobre sua área de atuação, bem como facilite o acesso ao público de todos os demonstrativos contábeis e financeiros e o relatório de atividades.

No campo das parcerias regidas pelo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), com base na Lei nº 13.019/2014¹⁰, aparecem, dentre outras obrigações, a necessidade da OSC divulgar na internet e em locais visíveis de suas sedes sociais e dos estabelecimentos em que exerça suas ações todas as parcerias celebradas com a administração pública.

É perceptível que por anos o cumprimento das obrigações relativas à transparência, por serem consideradas acessórias, foram cumpridas de modo incipiente pelas OSC’s, muitas vezes amparadas no entendimento de que a obrigação seria diluída, ou ainda, estaria inserida no dever de prestação de contas, momento em que se demonstraria de modo detalhado a aplicação do recurso.

Essa interpretação não corresponde as normativas aqui apresentadas, que exigem a publicidade durante as parcerias. Além disso, essa praxe inviabiliza o exercício do controle social, ou seja, o acompanhamento da sociedade na evolução do gasto do recurso público. Tem-se também que essa (não) prática é alheia ao Compliance, pois evidencia a não conformidade com as normativas que pautam o Terceiro Setor, especialmente aquelas que tratam de recursos públicos.

Outro ponto que reforça a importância da transparência está pautado em recente fiscalização da Corte de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP)¹¹, cujo relatório foi elaborado a partir da análise de 206 entidades e com o objetivo de avaliar a efetividade dos portais de transparência de entidades do Terceiro Setor, em que se evidenciou a insuficiência de dados previstos em leis nas páginas das OSC’s

Segundo o TCESP: “Apesar da falta dos dados obrigatórios, 82% das entidades do Terceiro Setor disponibilizam informações sobre transparência na internet e 75% delas possuem sites de fácil localização. O Tribunal de Contas verificou ainda que, em 87% dos casos, a linguagem é simples, objetiva e de fácil compreensão aos usuários”.

No quesito transparência ativa é gritante a baixa apresentação de documentos de modo a cumprir obrigações legais e contidas nos instrumentos de parceria. Constata-se que informações básicas como estrutura organizacional, endereços, horário de atendimento, documentação atualizada sobre demonstrações contábeis, parceiros e planos de trabalho, ainda não contam com ampla adesão/divulgação.

Ante a situação detectada, é importante que as OSC’s dediquem maior atenção ao tema da Transparência. Sugere-se que levantem, inclusive, as obrigações decorrentes das qualificações recebidas do poder público, tais como, no âmbito federal, as titulações de OS, CEBAS e OSCIP. Também é importante revisar os ajustes (termos de parceria, colaboração, fomento, acordo de cooperação, contrato de gestão e outros), a fim de avaliar se existe alguma obrigação específica dedicada à transparência.

Importante destacar que no campo das parcerias federais¹² a Lei 13.019/2014 não estabelece uma obrigatoriedade da OSC em criar e manter um site institucional, com os custos que isso acarreta. A obrigação imposta é de que as informações sejam publicizadas em sítios eletrônicos oficiais. Àquelas entidades que não possuem um site institucional a solução imediata e sem ônus financeiro para observar as regras de transparência da Lei nº 13.019/2014, no âmbito federal, seria a utilização do “Mapa das Organizações da Sociedade Civil”¹³.

O Mapa das OSCs é uma plataforma virtual de transparência pública colaborativa com dados das entidades de todo o Brasil, gerido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Tem como objetivos principais: dar transparência à atuação das OSCs, principalmente ações executadas em parceria com a administração pública; informar mais e melhor sobre a importância e diversidade de projetos e atividades conduzidas por essas organizações; disponibilizar dados e fomentar pesquisas sobre OSCs; e apoiar os gestores públicos a tomarem decisões sobre políticas públicas que já têm ou possam ter interface com OSCs.

Lembrando, após essa ampla explanação, que o exercício da transparência não pode implicar, entretanto, em desproteção de dados. Para a divulgação dos documentos, faz-se imprescindível que os dados pessoais dos dirigentes, conselheiros, associados, técnicos, voluntários e cidadãos atendidos sejam protegidos, observando-se rigorosamente as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD (Lei nº 13.709/2018)¹⁴.

A cultura de Transparência Ativa no Terceiro Setor é necessária não somente para cumprir as exigências legais verificadas em procedimentos de fiscalização do poder público. Essa postura de transparência e de dar publicidade às ações de interesse público, sobretudo as financiadas com recursos públicos, demonstra o amadurecimento da nossa Sociedade, fruto, certamente, do fomento à cultura de Accountability, Controle Social e Compliance.

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[1] Janaina Rodrigues Pereira. Advogada com atuação no Terceiro Setor na Covac Sociedade de Advogados. Mestre em Democracia e Bom Governo pela Universidade de Salamanca.

[2] Lucas Seara. Advogado. Consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (UFBA).

[3] Rozangela Borota Teixeira. Advogada com atuação no Terceiro Setor. Sócia-Diretora do escritório Borota Teixeira Sociedade de Advogados. Conselheira Nacional de Assistência Social.

[4] Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 - Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências.

[5] Lei nº 12.527, de 18 de Novembro de 2011 - Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.

[6] Decreto nº 7.724, de 16 de Maio de 2012 - Regulamenta a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.

[7] Lei nº 9.790, de 23 de Março de 1999 - Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências.

[8] Lei nº 9.637, de 15 de Maio de 1998 - Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.

[9] Lei nº 12.101, de 27 de Novembro de 2009 - Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social; regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social; altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993; revoga dispositivos das Leis nºs 8.212, de 24 de julho de 1991, 9.429, de 26 de dezembro de 1996, 9.732, de 11 de dezembro de 1998, 10.684, de 30 de maio de 2003, e da Medida Provisória nº 2.187–13, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.

[10] Lei nº 13.019, de 31 de Julho de 2014 - Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.

[11] Relatório preliminar Transparência nas Entidades do Terceiro Setor Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/noticias/consolidado%20CCS%20preliminar.pdf

[12] A solução apontada para as parcerias federais não é recomendada neste momento para as outras interações com o poder público e que exijam divulgação da informação em página institucional da entidade, o que demandará a análise do caso concreto para definição das estratégias.

[13] https://mapaosc.ipea.gov.br/index.html

[14] Lei nº 13.709, de 14 de Agosto de 2018 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

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