Prestação de Contas nas Parcerias do MROSC: o Poder Público pode exigir os documentos originais?

OSC Legal Instituto
8 min readJun 5, 2020

Por Lucas Seara¹ e Nailton Cazumba²

Uma das mudanças mais expressivas trazidas pela Lei nº 13.019/2014³, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), ao regime de parcerias entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil (OSC) recai sobre a fase de prestação de contas, que passaria a ser mais simplificada, com maior ênfase no acompanhamento e monitoramento sistemático da execução das atividades e dos projetos previstos no Plano de Trabalho pactuado.

Segundo a Lei 13.019, em seu art. 2º, XIV, a prestação de contas é o procedimento em que se analisa e se avalia a execução da parceria, onde se verifica o cumprimento do objeto e o alcance das metas e dos resultados previstos, compreendendo duas fases: a apresentação das contas, de responsabilidade da OSC; e de outro lado, a análise e manifestação conclusiva das contas, de responsabilidade da administração pública.

Em capítulo específico sobre o tema⁴, a Lei estipula a criação de procedimentos simplificados para a prestação de contas (art. 63, § 3º). E o mais importante, estabelece que a análise dessa prestação de contas deve considerar a verdade real dos fatos, além dos resultados alcançados (art. 64, § 3º). Isto é, a avaliação não se limita à execução financeira, devendo ser considerados os efeitos e os resultados da parceria no contexto onde ocorreu sua intervenção (suas ações), cabendo a avaliação do nexo entre as despesas realizadas e a efetiva execução das metas previstas e do objeto pactuado.

No entanto, não é o que se verifica na prática. Em alguns estados e municípios o poder público, e seus órgãos de controle e fiscalização, tem ampliado as exigências relativas à apresentação de formulários e documentos, conferindo uma ênfase ainda maior às prestações de contas financeiras. Não se sabe, até então, se tal fenômeno decorre da incapacidade de realizar o monitoramento e acompanhamento das parcerias conforme previsto na nova legislação, ou da resistência em entender que a Lei nº 13.019/14 exige mudanças de comportamento e de cultura institucional para os órgãos integrantes da administração pública.

Foi neste contexto que o MROSC reforçou a importância das fases de Planejamento e de Monitoramento e Avaliação no novo regime de parcerias. Prevalece o entendimento de que um Plano de Trabalho bem elaborado e negociado entre as partes - OSC e Poder Público - consolida o roteiro para sua boa execução. Além disso, determina que o Poder Público deve caminhar junto, sistematizando um competente monitoramento do projeto ou da atividade, potencialmente diminuindo as chances de problemas na execução, até porque os eventuais desacertos podem e devem ser corrigidos na medida em que forem detectados pelos parceiros, inclusive com ajustes nos planos, reavaliações, repactuações e remanejamentos, quando necessários.

Mas, conforme pontuado acima, apesar do ideal que o novo regime trouxe, a vida real tem demonstrado situações complicadoras para a vida das OSC, derivadas de interpretações absolutamente equivocadas da legislação ou de regulamentações (leis, decretos, portarias, resoluções) mal elaboradas.

Aqui e ali temos tido contato com editais e regulamentos que exigem que as organizações entreguem ao Poder Público a documentação original: as notas fiscais, contracheques, guias de recolhimento de tributos e contribuições sociais, recibos e demais comprovantes de despesas que compõem as prestações de contas das parcerias.

De logo devemos afirmar que tais documentos pertencem à OSC e não a terceiros, ainda que os recursos movimentados sejam públicos⁵. No caso das parcerias, a obrigação da OSC é apresentar as cópias, marcadamente nos casos onde a Prestação de Contas é feita em plataforma eletrônica⁶, e o Poder Público pode verifica-los e compara-los com os originais, que ficam sob poder da instituição.

O art. 68 da Lei 13.019/2014 determina que os documentos incluídos pela entidade na plataforma eletrônica, desde que possuam garantia da origem e de seu signatário por certificação digital, serão considerados originais para os efeitos de prestação de contas. E o parágrafo único é absolutamente claro ao determinar que durante o prazo de 10 (dez) anos, contado do dia útil subsequente ao da prestação de contas, a OSC deve manter em seu arquivo os documentos originais que compõem a prestação de contas.

Cabe destacar ainda que o art. 46, § 3º da lei⁷ frisa que o pagamento da remuneração da equipe contratada, e consequentemente os encargos sociais decorrentes da relação de emprego, não gera vínculo trabalhista com o poder público. Desta forma, a administração pública se afasta totalmente de qualquer responsabilidade trabalhista, devendo toda a documentação original comprobatória ficar de posse da OSC, que é de fato o empregador na relação, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho(CLT).

Importante evidenciar alguns regulamentos estaduais do MROSC que seguem o entendimento estabelecido na Lei nº 13.019/2014, no sentido de que os documentos originais pertencem a OSC, dentre as quais destacam-se as normativas aplicadas nos Estados do Amapá, Pará, Maranhão, Pernambuco, Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul⁸. Por sua vez, o regulamento do Estado de Santa Catarina⁹ determina que as cópias dos documentos serão conferidas por servidor conforme os originais. No mesmo sentido do regulamento catarinense, a Resolução 1.381/2018¹⁰ do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia exige que os comprovantes das despesas realizadas deverão ser “devidamente conferidas e reconhecidas por servidores responsáveis pelo recebimento, assim como as faturas e notas fiscais” (art. 13, VI).

Destaque-se aqui a dubiedade que apresenta o Decreto Estadual nº 47.132 de 20/01/2017 de Minas Gerais¹¹, que em seu art. 52, V, exige que as OSC instruam suas contratações de serviços e aquisições de bens com documentos originais relativos ao pagamento e à comprovação de despesas. Em outros dispositivos - arts. 72, 73 e 78 - o próprio decreto informa que os documentos originais devem ficar com as OSC pelo prazo de dez anos.

O ponto negativo fica por conta da Resolução nº 107/2018 do Tribunal de Contas do Estado da Bahia¹², que no seu art. 19 exige nas prestações de contas das parcerias, para a comprovação das despesas realizadas, a documentação original, dentre eles: notas, comprovantes fiscais, recibos, folhas de pagamento e guias autenticadas de recolhimento dos encargos sociais, comprovantes de recolhimento do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

O que se percebe, portanto, é que para o poder público, em alguns casos, é mais importante verificar se o contracheque está assinado pelo empregado, ou se a nota fiscal está acompanhada por um recibo, do que monitorar a parceria e verificar se as metas estão sendo alcançadas, se o objeto social pactuado está sendo cumprindo, e principalmente, se o público alvo está sendo atendido em seu mais alto grau de satisfação. Neste ponto, destaca-se ainda que a comprovação do pagamento das despesas, caso fosse necessária, teria muito mais eficiência com a verificação do extrato da conta aberta para a execução da parceria e do comprovante de transferência bancária, em substituição da exigência de apresentação das referidos contracheques e recibos.

Outra cobrança que não tem o menor sentido refere-se à exigência de documentos fiscais originais, uma vez que estamos na era da nota fiscal eletrônica, criada para ser consultada sem a necessidade de impressão, em formato digital.

Ademais, o MROSC ratifica o dever e a responsabilidade da OSC na escrituração de sua movimentação financeira de acordo com as Normas Brasileiras de Contabilidade¹³. Isso é muito importante para as organizações sem fins lucrativos, pois é exatamente o registro correto da sua movimentação financeira e patrimonial respaldada por documentação idônea que fornecerá a ela condições de demonstrar que não distribui superávits ou dividendos e que aplica todos os recursos em sua finalidade estatutária, sendo a contabilidade realizada em obediência às normas vigentes um dos requisitos para o gozo da imunidade e isenções tributárias.

Portanto, pela previsão contida na lei, os documentos originais devem ser mantidos pelas OSC em seus arquivos, uma vez que são emitidos em seu nome e com seu CNPJ. Resta evidente que apenas as cópias devem seguir para apreciação na Prestação de Contas, quando não for possível a comprovação da execução do objeto através da avaliação do Relatório de Execução do Objeto elaborado pela OSC, do Relatório de Monitoramento e Avaliação emitido pela Comissão constituída para tal fim, e ainda pelo Parecer Técnico Conclusivo da Análise da Prestação de Contas emitido pelo Gestor designado para fiscalizar a execução da parceria.

Havendo a real necessidade de avaliação da execução financeira, de acordo com a previsão legal, a documentação deve ser apresentada de forma digitalizada, quando há um sistema eletrônico, ou através de cópias reprográficas, quando a prestação de contas financeira for apresentada fisicamente.

  1. Lucas Seara - Advogado e consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (UFBA). Professor convidado na Escola de Administração da UFBA. Coordenador do Projeto OSC LEGAL
  2. Nailton Cazumbá - Contador; Pós Graduado em Contabilidade das Organizações do Terceiro Setor, Controladoria e Auditoria; Sócio-Gerente da Pauta Assessoria Contábil, Consultoria e Treinamento; Consultor, Instrutor de Cursos e Palestrante Especialista no Terceiro Setor
  3. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 - Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.
  4. Lei 13.019/2014 - Capítulo IV - Da Prestação de Contas, Artigos 63 a 72.
  5. Constituição Federal, art. 70
  6. Lei 13.019/2014 - Art. 65. A prestação de contas e todos os atos que dela decorram dar-se-ão em plataforma eletrônica, permitindo a visualização por qualquer interessado.
  7. Lei 13.019/2014 - Art. 46 § 3º. O pagamento de remuneração da equipe contratada pela organização da sociedade civil com recursos da parceria não gera vínculo trabalhista com o poder público.
  8. Decreto Estadual AP n° 371 de 06/02/2017; Decreto Estadual PA nº 1.835, de 05/09/2017; Decreto Estadual MA nº 32.724, de 22/03/2017; Decreto Estadual PE nº 44.474, de 23/05/2017; Decreto Distrital DF nº 37.843, de 13/12/2016; Decreto Estadual RS nº 53.175, de 25/08/2016; Decreto Estadual MS nº 14.494 de 02/06/2016.
  9. Decreto Estadual SC nº 1.196, de 21/06/2017
  10. Resolução nº 1.381/2018 do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia - Dispõe sobre a fiscalização exercida pelo TCM sobre o repasse e a aplicação de recursos concedidos por órgãos municipais a entidades civis sem fins lucrativos, mediante Termo de Fomento, Termo de Colaboração, Acordo de Cooperação ou outros instrumentos congêneres, e dá outras providências.
  11. Decreto Estadual MG nº 47.132, de 20/01/2017
  12. Resolução nº 107/2018 do Tribunal de Contas do Estado da Bahia - Estabelece normas e procedimentos para o controle externo de termos de colaboração, de termos de fomento e de acordos de cooperação celebrados entre a Administração Pública do Estado da Bahia e organizações da sociedade civil.
  13. Ratifica-se a importância de uma boa gestão contábil nas OSC, através de um profissional de contabilidade devidamente habilitado, conforme tratado no texto A Lei 13.019/2014 e a gestão contábil das Organizações da Sociedade Civil. Disponível em https://medium.com/@osclegal/a-lei-13-019-2014-e-a-gest%C3%A3o-cont%C3%A1bil-das-organiza%C3%A7%C3%B5es-da-sociedade-civil-a3b34b28858c

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