HIV/AIDS: a contribuição das Organizações da Sociedade Civil

OSC Legal Instituto
6 min readNov 29, 2023

Por Lucas Seara

1º de Dezembro é o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS. Uma data para lembrar das pessoas que se foram vitimadas pela doença e também para celebrar quem segue na luta. Uma oportunidade de se pensar nos avanços e conquistas, além dos desafios para o enfrentamento deste (ainda grave) problema de saúde pública.

A aids é uma doença complexa, aliás, tecnicamente é uma síndrome: infecção viral que reprime e, no estágio mais avançado, destrói o sistema imunológico do organismo humano. É causada pelo HIV - vírus da imunodeficiência humana. Com a infecção pelo HIV aparecem outras doenças que podem debilitar e levar a óbito, as chamadas infecções oportunistas (a tuberculose é a mais letal delas).

Além da complexidade médico-clínica, a história da aids está marcada pela exclusão social, pelo preconceito, pela discriminação e pelo estigma. Por sua condição sorológica ou por estarem à margem dos padrões sociais, grupos de indivíduos são estigmatizados e excluídos, classificados como “desviantes”: homossexuais, travestis, profissionais do sexo, usuários de drogas injetáveis, pessoas privadas de liberdade, crianças e adolescentes em situação de risco social.

Dados do Ministério da Saúde informam que o total de casos de AIDS no Brasil em 2022 está acima da marca de milhão (1.088.536). Há prevalência maior entre os homens (719.229) do que nas mulheres (369.163). Destaca ainda a categoria de “Menores de 5 anos” com um quantitativo de 18.166 casos notificados¹. Segundo a UNAIDS, são mais de 39 milhões de pessoas com aids no mundo².

A resposta brasileira à doença e suas consequências sociais é considerada referência internacional. Aqui elencamos três elementos fundamentais:

(i) a resposta ao HIV/AIDS está inserida no Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito;

(ii) a distribuição gratuita de toda a medicação para o tratamento específico, garantida pela Lei nº 9.313, de 13/11/1996³;

(iii) a participação ativa da sociedade civil.

Aqui ressaltamos o protagonismo do movimento de luta contra a aids, especialmente as chamadas “ONGs/AIDS”. Em contextos onde predominam o estigma, o preconceito e as violências contra determinados públicos, o papel das OSCs é por demais relevante. Assim foi nos anos 1980, quando o cenário era extremamente negativo para as pessoas com aids: foram as ONG/AIDS quem encaparam essa bandeira, já que as pessoas não podiam aparecer publicamente.

Pela forte influência da experiência individual com a soropositividade, as ONG/AIDS reclamam pelas condições materiais, por transformações subjetivas individuais e coletivas. Atuam nas necessidades básicas cotidianas, o que pressupõe, de um lado, uma intermediação entre as pessoas afetadas pela epidemia e as instituições públicas e privadas (reivindicação por medicamentos, leitos, internações, planos de saúde, escolas, etc.), e por outro, a redefinição de sociabilidades perdidas em função do preconceito (laços familiares, relações de trabalho, etc).

Com a epidemia do HIV/aids, temas que eram tidos como absolutamente privados, envoltos em tabus e mitos, se tornaram assunto de interesse público, mobilização social e objeto de políticas públicas, incorporados a discussões diversas e a publicização como questões sociais relevantes. O fenômeno da aids é de tamanha complexidade que correlaciona os conceitos de público e privado, questionando a suposta dicotomia entre estes.

Os dilemas enfrentados neste campo entrelaçam as questões globais referentes à epidemia (acordos e normas sobre patentes e propriedade intelectual de medicamentos), com a vivência cotidiana da aids (acesso aos medicamentos e programas de saúde eficazes). São dilemas que articulam a pressão e o preconceito que sofrem os soropositivos em âmbito privado (família e trabalho) com as questões públicas das normas positivadas e da incapacidade da estrutura estatal para atender a demandas sociais específicas.

A primeira ONG/AIDS da América Latina foi o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids de São Paulo (GAPA/SP). Lá surgiram as primeiras discussões no Brasil sobre as implicações jurídicas da aids, em 1985. Sua assessoria jurídica, capitaneada pela advogada Aurea Abbade, foi resposável pela primeira ação judicial que tinha a doenca como objeto. Recebeu duas menções honrosas pelo Ministério da Justiça na área dos direitos humanos.

Foi ali que registramos um dos exemplos mais marcantes de ativismo jurídico a serviço de uma causa social: no começo da epidemia, enquanto os ativistas invadiam hospitais para garantir tratamento, literalmente “chutando a porta” para entrar com os doentes, em outro cenário, a equipe jurídica militava nos corredores do poder judiciário em busca das medidas judiciais para garantia do direito à saúde daquelas pessoas. Muitas vezes os prazos processuais, os “tempos” do Poder Judiciário, não correspondiam com a saúde debilitada dos afetados que morriam aos montes sem o devido tratamento.

De lá para cá, o cenário mudou sensivelmente, especialmente impulsionado pela evolução no tratamento da doença: com novas e mais efetivas drogas, as pessoas passaram a viver mais e melhor. A doença vai se tornando crônica e se aprende a conviver com ela. Com isso, mudaram também as demandas enfrentadas pelas entidades: questões previdenciárias e acesso aos novos tratamentos se destacaram, além dos (infelizmente) corriqueiros problemas derivados do estigma e do preconceito.

Eis um breve cenário onde vêm atuando as OSC que se dedicam ao tema da aids. A partir daí, traçaremos algumas reflexões.

No tocante as parcerias com os poderes públicos, destacamos um desafio referente ao Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Há uma interpretação equivocada de que os recursos do SUS não poderiam ser utilizados em parcerias com base no MROSC, apenas em convênios e contratos de natureza complementar. Trata-se de uma leitura errônea do art. 3º da Lei nº 13.019/2014 que se materializa nos editais que apresentam exigências incompatíveis com o regime do MROSC, por exemplo, documentos que não constam na Lei nº 13.019/2014 (cujo rol é taxativo), como o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS). Nada disso tem fundamento: as OSC podem fazer parcerias com base no MROSC para promoção da saúde (como a prevenção ao HIV) e para isso não dependem de certificação³.

O tema da sustentabilidade econômica das entidades sem fins lucrativos segue como um problema, em razão dos poucos recursos disponíveis. Para enfrentar esse contexto, importante que as entidades invistam na sustentabilidade técnica, começando por um bom planejamento estratégico e de captação de recursos.

Vez por outra nos deparamos com manifestações de entidades tratando de uma aids que remete ao perfil da doença nos anos 1980, 1990 ou mesmo 2010. Como fenômeno mutante, a epidemia vem se transformando e as OSC devem refletir sobre o contexto atual, especialmente com a cronificação da doença e seus impactos cotidianos. Ainda que o preconceito e os estigmas sigam causando dificuldades na vida das pessoas afetadas pelo HIV/aids, os meios e as narrativas vão ficando mais complexos, inclusive pela utilização das redes sociais. Neste sentido, fundamental que as OSC se mantenham atualizadas e conectadas com outras agendas, além de oportunizarem espaços para novas lideranças e ideias.

É importante pensar na retomada do princípio da solidariedade, como retomada da capacidade das entidades de realizar aquilo que foi sua marca fundamental, uma atuação social que mistura: estratégias voltadas a intervenção e controle social, cuidado pessoal e cuidado com o outro, a horizontalidade das relações, bem como o uso de ferramentas que combinam elementos jurídicos e políticos, sob a ótica da cidadania.

Por sua vez, cabe aos poderes públicos, especialmente as áreas que se relacionam com o enfrentamento da doença, recolocarem as parcerias com as OSC em discussão. É preciso ter clareza política sobre o papel das entidades sem fins lucrativos e sobre como estes atores seguirão contribuindo com as políticas públicas governamentais, seja em ações de caráter preventivo, seja na atenção às pessoas afetadas, sem deixar de lado o exercício do controle social.

Como consequência, é importante que ocorra um realinhamento nessa relação, discutindo-se inclusive quais as ferramentas e recursos serão disponibilizados: chamamento público de projetos, pesquisas, participação em conselhos. Estes são alguns exemplos de como se pode instrumentalizar as relações de colaboração.

A resposta brasileira à epidemia de HIV/AIDS é considerada uma das melhores em todo o mundo. A união de esforços de governos e de organizações da sociedade civil consolidou uma experiência institucional peculiar que evidencia a potência das políticas públicas participativas e de arranjos que possibilitem a atuação conjunta dos diversos atores sociais.

Sigamos avançando.

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Lucas Seara - Advogado e consultor. Empreeendedor Social. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente coordena o OSC LEGAL Instituto, que se dedica à legislação das Organizações da Sociedade Civil, à Gestão Social e às Políticas Públicas.

1. Mais informações em https://www.gov.br/aids/pt-br

2. Dados disponíveis no site da UNAIDS: https://unaids.org.br/estatisticas/#:~:text=Havia%2039%20milh%C3%B5es%20%5B33%2C1,(0%20%E2%80%93%2014%20anos).

3. Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996 — Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS.

4. Sugere-se a leitura do artigo: SEARA, L. N. O Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e sua aplicabilidade nas parcerias entre o Poder Público e as organizações da sociedade civil nas políticas de saúde. In: Revista de Direito do Terceiro Setor - RDTS, Belo Horizonte, ano 12, n. 24, p. 61–85, jul./dez. 2018

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