Frankstuto: o estatuto feito de mil pedaços
Por Lucas Seara
O notável livro da romancista inglesa Mary Shelley, Frankenstein, or the Modern Prometheus (em português, Frankenstein ou o Prometeu Moderno), foi lançado em 1818. Um clássico, considerado precursor do gênero ficção científica. A obra narra como o estudante de medicina Victor Frankenstein criou um monstro juntando diferentes partes de corpos de pessoas mortas, que ganharam vida naquele ser. Apesar da aparência quase humana, a criatura tinha um aspeto monstruoso, causando uma série de transtornos.
E antes de prosseguir avisamos: calma leitor, calma leitora, a intenção aqui não é assustar ninguém. Uma vez introduzido este pavoroso personagem, pausa na inserção literária.
Trazendo a conversa para o campo das associações, mais especificamente para os estatutos destas entidades, temos dialogado com dezenas delas, que apresentam todo tipo de dificuldades para lidar com as questões burocráticas. Muitas não têm recursos para financiar todos os valores de formalização e manutenção da regularidade, seja com relação aos tributos, ou mesmo pelos custos junto aos cartórios e às prefeituras, por exemplo. Há ainda aquelas ideias recorrentes, mas muito mal embasadas, de que para elaborar um estatuto não é necessário um acompanhamento técnico, já que se trataria de uma mera formalidade que se apresenta ao cartório¹.
Neste cenário, prevalece o costume de se construir o estatuto das associações a partir de trechos de documentos diversos: tem quem se inspire em documentos de entidades parceiras e tem aqueles padrões disponibilizados pelos cartórios ou mesmo pelas contabilidades. Mais recentemente, o usual é fazer download pela internet, já que estão disponíveis uma infinidade de modelos e formulários.
Vale dizer que não temos nada contra os modelos disponibilizados, seja qual for a fonte, incluindo os diversos sites da internet. Estes documentos podem ser bons ou ruis, melhor ou pior embasados, ter razoáveis níveis de organização, enfim, tem de todo tipo. Seja como for, acreditamos que aquelas pessoas que se propõem a elaborar e disponibilizar tais modelos têm a melhor das intenções de contribuir com as associações.
O OSC Legal Instituto disponibiliza um modelo em seu site (www.osclegal.org.br) como parte do processo pedagógico de construção ou gestão de uma entidade. Em nossa metodologia, o estatuto é o primeiro passo para se pensar sistematicamente as dinâmicas internas de uma associação, a partir das perspectivas jurídica (adequação às leis vigentes), política (distribuição de poder) e de gestão social (governança).
Mas temos que ressaltar que os modelos são instrumentos, devem ser tratados como meio e não como fim. Ou seja, o documento (por melhor que seja a sua qualidade) não vem pronto e não basta preencher os dados específicos, como CNPJ e endereço da entidade. É preciso fazer uma mediação, um trabalho de adaptação daquele documento à realidade de cada entidade, à sua vocação institucional, aos desafios que se propõe a enfrentar cotidianamente e ao seu planejamento.
É importante procurar profissionais especializados, da área jurídica e contábil para a tarefa. Lembrando sempre que a legislação exige a assinatura de advogado/a regularmente habilitado/a nos atos constitutivos das associações, o que garante sua regularidade jurídica².
Mas o que se vê na prática é que as pessoas saem colando os trechos, artigos e dispositivos de diversas fontes, quase como se estivessem montando um quebra-cabeça. Só que aqui a brincadeira tem repercussão jurídico institucional, com base no art. 54 do Código Civil, que trata especificamente do tema dos estatutos das associações. Se os itens exigidos na lei não estiverem atendidos, o documento é nulo, portanto, sem valor jurídico³.
Em nossos cursos, tratamos de um caso assessorado por nossa equipe, que se tornou paradigmático para essa discussão. O estatuto da entidade, na parte inicial, previa a reeleição dos membros do seu órgão executivo (diretoria). Mais adiante, outro dispositivo proibia o instituto da reeleição para qualquer dos órgãos da entidade, incluindo o órgão executivo. Houve uma divergência de entendimento entre os associados por ocasião do período eleitoral, que por pouco deu em briga e foi parar nas vias judiciais. Tem-se aí um claro problema de incompatibilidade, uma contradição entre dispositivos do mesmo estatuto, cada um apontando para um caminho⁴.
Daí que recomendamos sempre uma criteriosa leitura do documento, empregando avaliações gramatical, lógica e sistemática:
(i) Avaliação gramatical e individualizada dos dispositivos textuais no sentido de desvendar o significado de cada item, além das questões gramaticais empregadas, como ortografia, pontuação, concordância, etc.
(ii) Avaliação lógica para conferir a coerência textual, evitando eventuais contradições entre termos e conceitos.
(iii) Avaliação sistemática, com objetivo de garantir compatibilidade entre os dispositivos e o conjunto do texto, marcadamente para evitar contradições com a legislação e com os princípios gerais do direito. Este método impede que os dispositivos estatutários sejam interpretados de modo isolado, exigindo que todo o conjunto seja analisado simultaneamente, em sintonia com a Constituição e as demais normas jurídicas aplicáveis.
- “Mas e o Frankstein, que relação tem com o tema, criatura?” - A essa altura, já perguntam o cauteloso leitor e a atenta leitora.
A resposta aparece quando analisamos aquele estatuto tipo “colcha de retalhos” ou “quebra-cabeça”, compostos a partir de trechos, dispositivos, artigos, enfim, da mistura de pedaços de outros documentos, que (supostamente) ganham vida. Este é o “Frankstuto”, o estatuto feito de pedaços.
Tal qual o nosso personagem clássico, a solução fácil pode se tornar um monstro, com potencial de causar mais problemas do que soluções.
Então, cuide bem do seu estatuto!
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Lucas Seara - Advogado. Consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (UFBA). Autor do Livro “27 histórias de uma caminhada com as Organizações da Sociedade Civil no Brasil”
- Registre-se ainda as analogias indevidas com a Lei das Sociedades Anônimas - Lei n° 6.404, de 15/12/1976 - ou com a Lei de Licitações - Lei nº 8.666, de 21/06/1993, em processo de substituição pela Lei nº 14.133, de 01/04/2021.
- Lei nº 8.906, de 04/07/1994 - Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
- Código Civil, Art. 54 - Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá: I — a denominação, os fins e a sede da associação; II — os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; III — os direitos e deveres dos associados; IV — as fontes de recursos para sua manutenção; V — o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI — as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; VII — a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
- Vez por outra aparecem casos de entidades que proíbem a remuneração dos associados, sob qualquer aspecto, em um determinado ponto do estatuto; na sequência do documento, paradoxalmente, possibilitam tal remuneração, numa clara oposição. Saiba mais casos como esse no E-book “27 histórias de uma caminhada com as Organizações da Sociedade Civil no Brasil”, do OSC LEGAL Instituto. Disponível em: www.osclegal.org.br