Devoção e Trabalho: Impactos da Lei nº 14.647/2023 nas Organizações Religiosas

OSC Legal Instituto
4 min readAug 22, 2023

Por Fernanda Cunha

A Lei nº 14.647/2023¹ trouxe uma mudança significativa nas relações de trabalho envolvendo as organizações religiosas, ao alterar o artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Essa alteração estabeleceu a ausência de vínculo empregatício entre entidades religiosas ou instituições de ensino vocacional e os ministros de confissão religiosa, como pastores, padres, rabinos, imames e babalorixás, assim como aqueles equiparados. A lei inadmite a existência de vínculo, mesmo que esses ministros estejam envolvidos em atividades administrativas, de formação ou treinamento.

Essa lei oferece segurança jurídica ao ratificar a jurisprudência dominante, tanto no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho quanto na maioria dos Tribunais Regionais do Trabalho, de que a atividade religiosa por si só não implica vínculo empregatício. A partir de então, solidifica-se o entendimento de que atividades de cunho eclesiático como pregação, orientação espiritual, liturgia e outras práticas específicas não são equivalentes às funções típicas de um empregado regido sob as leis trabalhistas. Isso ocorre porque tais atividades geralmente não envolvem uma relação de subordinação jurídica inerente ao vínculo empregatício, pois, são consideradas parte integrante do exercício da fé e da missão religiosa, como manifestação de fé, do temor e amor a Deus, por exemplo.

É relevante notar que a lei nº 14.647/2023 prevê uma exceção no seu artigo 1º, parágrafo 3º, ao reconhecer a possibilidade de estabelecer vínculo empregatício em casos de “desvirtuamento da finalidade religiosa ou voluntária”. Este dispositivo legal considera que, circunstancialmente, algumas instituições religiosas, afastando-se de sua vocação eclesiástica, adotam práticas que se assemelham a operações comerciais. Isso inclui, por exemplo, a fixação de metas de captação de recursos e vendas de produtos, que devem ser alcançadas pelos indivíduos que atuam na organização na qualidade de ministros religiosos, dessa forma são tratados como funcionários, nos moldes da legislação trabalhista.

A título de exemplo, eventualmente, alguns ministros religiosos desempenham atividades que não guardam relação alguma com sua fé ou missão religiosa, praticando atos típicos de empreendimentos comerciais, como a vendas de produtos e a obrigatoriedade de alcançar metas de captação de recursos. O cumprimento de tais obrigações se dá em atendimento a determinação de algum membro religioso hierarquicamente superior. Diante destas circunstâncias, poderá ser reconhecido o vínculo laboral entre tais ministros e a respectiva organização religiosa, desde que presentes, cumulativamente, os requisitos estipulados no artigo 3º da CLT, quais sejam: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade.

Assim, é fundamental considerar se as atividades realizadas por essas instituições têm natureza religiosa ou econômica, de acordo com o princípio da primazia da realidade.

Dessa forma, uma organização religiosa se enquadra como empregadora quando desvia de sua finalidade religiosa e assume uma abordagem econômica, assemelhando-se a uma empresa comercial. É relevante destacar que a mencionada lei revela uma certa fragilidade na medida em que não oferece uma especificação clara sobre como identificar potenciais desvios de finalidade religiosa. Entende-se que somente através dessa avaliação seria possível determinar a adequação das obrigações trabalhistas vinculadas à relações estabelecidas entre as organizações religiosas e seus membros.

Portanto, torna-se incumbência do sistema judiciário trabalhista examinar, em cada caso concreto, a caracterização desse desvio. No contexto literal da lei, preocupa o fato de que entidades religiosas possam aplicar indevidamente a legislação, deixando de reconhecer o vínculo empregatício quando legítimo for.

Tal ambiguidade emerge da ausência de uma definição clara e explícita do perfil e das responsabilidades de um ministro de confissão religiosa na legislação. Tal fato coloca em vulnerabilidade aqueles indivíduos que, além de desempenhar funções religiosas, prestam, de forma prioritária, serviços administrativos e organizacionais de natureza remunerada às instituições religiosas.

Mostra-se crucial elucidar que a inovação jurídica em análise, ao inadmitir o reconhecimento de vínculo trabalhista, se aplica apenas à relação laboral daqueles que atuam prioritariamente como ministros eclesiásticos, proporcionando serviços de cunho espiritual, e que ocasionalmente desempenham atividades de cunho administrativo e organizacional.

Por fim, compreende-se que a Lei nº 14.647/2023 tem como propósito estabelecer uma harmonia entre a garantia da natureza vocacional e voluntária das atividades de cunho religioso e da proteção social do trabalhador, quando as circunstâncias assim demandarem. Ademais, acredita-se que a promulgação desta lei tem potencial para contribuir na redução de demandas judiciais que visem o reconhecimento do vínculo laboral com entidades religiosas.

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Fernanda Cunha - Bacharela em Direito (UFBA), Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário

  1. Lei nº 14.647, de 04 de agosto de 2023 - Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para estabelecer a inexistência de vínculo empregatício entre entidades religiosas ou instituições de ensino vocacional e seus ministros, membros ou quaisquer outros que a eles se equiparem.

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