Breves Comentários Sobre a Nova Lei de Improbidade e sua Aplicabilidade para os Dirigentes das OSCs

OSC Legal Instituto
9 min readJan 27, 2022

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Por Anna Dolores Barros de Oliveira Sá Malta

Em 2014, parte do Terceiro Setor vive mais uma ruptura legislativa, pois organismos internacionais, a Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais (ABONG) e outros setores da sociedade civil organizada conectados com a agenda 2030 da ONU, especificamente no que diz respeito a ODS 16¹, avançam na luta política realizada junto ao Congresso Nacional contra a criminalização e em busca de um modelo de sustentabilidade para as organizações da sociedade civil que atuam para a promoção do interesse público².

O chamado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil foi muito bem vindo, aplaudido e esperado, destacando-se nessa ruptura. O MROSC assenta o termo “Organização da Sociedade Civil - OSC”, propondo um modelo sustentável de desenvolvimento para as entidades, baseado no fortalecimento da sociedade civil, na gestão democrática dos recursos, transparência e controle social³.

O novo marco avança nas demandas da sociedade civil organizada no Brasil, mas não tardou para que os problemas que o desenvolvimento social deste país enfrenta se apresentarem. Assim chegou o tempo do questionamento concernente à responsabilidade dos dirigentes das OSC, pois a Lei 13.019/2014⁴ também introduziu a figura do dirigente “ficha suja” no cardápio do controle.

O dirigente ficha suja fica configurado a partir dos seguintes pressupostos:

- Cujas contas da parceria tenham sido consideradas irregulares ou rejeitadas por órgão de contas em decisão irrecorrível nos últimos 8 anos;

- Julgado responsável por falta grave e inabilitado para o exercício de cargo ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;

- Considerado responsável por ato de improbidade, enquanto perdurar o efeito continuado das penas.

O risco de criminalização e o temor pessoal de cada gestor nas OSCs coloca um nevoeiro diante da implementação da Lei nº 8.429/1992⁵, recentemente alterada pela Lei nº 14.230/2021⁶, que está na conta dos nossos desafios a partir de 2022, inclusive por conta do fenômeno que alguns administrativistas intitulam de paralisia decisória, o “apagão das canetas”⁷.

Na expectativa de fazer um delineamento mais específico para esse debate estamos observando especificamente o ponto do controle concernente à improbidade administrativa que é passível de se apresentar na hipótese em que OSCs se conectam pelos termos de colaboração e termos de fomento com a administração pública.

O MROSC prevê hipóteses específicas em que vícios do processo seletivo, superficialidade na transparência ou má gestão na execução dos contratos de parceria passam a se configurar como hipóteses de improbidade administrativa.

A Lei de Improbidade Administrativa, por sua vez, abrange os dirigentes das OSCs na lista dos sujeitos passivos desse supra ilícito com repercussão tão lesiva para a reputação das instituições e de seus representantes. Isto tudo num ambiente em que o compliance⁸ ainda está distante de ser a ferramenta mais difundida.

A improbidade é um risco para o dirigente diante de um cruzamento de informações entre a Lei 13.019/2014 e a Lei 14.230/2021, pois qualquer grande expectativa no uso de recursos públicos por parte de OSC que estão ainda hipossuficientes e muito longe da autonomia promovida pelo financiamento extra-estatal.

Nesse contexto, nota-se a incidência da Lei de Improbidade Administrativa no que se refere ao ente que transfere os recursos para entidades do terceiro setor, bem como da entidade beneficiada com o recebimento dos recursos públicos⁹.

Nessa construção jurídica de mais de duas décadas que prega a parceria entre Estado e Terceiro Setor para suplementariedade de serviços não exclusivos é notável a contribuição da sentença manifestada na ADI 1923-5 e na Lei 13.019/2014.

A decisão judicial acima citada refere a aplicação parcial do regime jurídico de direito público na seleção de trabalhadores, fornecedores e prestação de contas. Por sua vez, a Lei das Parcerias (Lei nº 13.019/2014), que compõe o MROSC, indica parâmetro inequívoco de compliance para as contratações entre Poder Público e OSC, detalhando procedimentos para a responsabilidade da gestão superior, protocolos para contratação de fornecedores e valorização da capacitação a partir do compartilhamento de informações entre as instituições do segmento¹⁰.

A Lei n. 14.230/2021 descreve os atos de improbidade administrativa a partir de três categorias: atos que importam enriquecimento ilícito, atos que causam prejuízo ao erário e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, fazendo consideráveis alterações na antiga Lei 8.429/1992.

Conceitualmente, pode-se considerar ato de improbidade administrativa para os fins do art. 37, §4º, da CF/1988 e da Lei n. 14.230/2021:

(i) as condutas de qualquer agente público contrárias diretamente aos princípios da finalidade, da publicidade, do concurso público, da prestação de contas e da licitação, bem como a violação de segredo e a prevaricação, independentemente de qualquer resultado material;

(ii) os comportamentos prescritos na lei (regras), que produzam os resultados prejuízo ao erário e enriquecimento sem justa causa do agente e/ou do terceiro, ensejando tais procedimentos, normalmente dolosos e excepcionalmente culposos, marcados pela violação do princípio da moralidade;

(iii) responsabilização sujeita a um regime próprio, autorizador da aplicação proporcional das sanções pertinentes e compatíveis de perda dos bens e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios fiscais ou creditícios, independentemente das instâncias administrativas, criminal, civil e política, tendo em vista a concretização do projeto constitucional de probidade na Administração Pública¹¹.

Ademais, a normativa federal trouxe a referida obrigatoriedade, que certamente funciona como mecanismo de controle de grande relevância, já que exige a escrituração de receitas e despesas, como o direito já impunha, adicionando a possibilidade de despesas vinculantes em relação a diárias, hospedagem e alimentação se a parceria exigir, além de custos indiretos.

Vale destacar que a prestação de contas das entidades é algo primordial para que seja feita a análise contábil, além de avaliar os resultados obtidos pela instituição. Cumpre-se dizer que o órgão público, repassador de recursos, incentivos e isenções às entidades do terceiro setor deve controlar minuciosamente estas ações, escolher de forma criteriosa a entidade social que se beneficiará com o recebimento dos benefícios públicos, acompanhar o desenvolvimento das atividades, almejando com essas cautelas evitar desvios dos recursos repassados, cm vistas a eficiência prevista no art. 37 da Constituição Federal de 1988¹².

Importante destacar que após o advento da Lei nº 14.230/2021 não existem mais atos de improbidade imprescritível (pelo menos, não na visão da lei¹³). O prazo agora é um só para todos os atos: 8 (oito) anos contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.

Em se tratando da resolução de litígios, com solução de mérito, mediante acordo das partes em matéria de relevância pública, a nova situação da Lei de Improbidade Administrativa prevê a possibilidade de se firmar acordo ante qualquer tipo de Ato de Improbidade, com investigados pessoas físicas e/ou jurídicas. Como formas de efetivação do acordo, podem ser acordadas cláusulas prevendo:

a) transferência não onerosa, em favor da entidade lesada, da propriedade dos bens, direitos e valores hauridos como proveito direto ou indireto da infração (casos de enriquecimento ilícito);

b) previsão da multa cominatória e o descumprimento do acordo a ser destinada a Fundo de Recuperação de Direitos Difusos (estadual ou municipal - criado por Lei) ou, excepcionalmente, a entidade preexistente e que possua como finalidades a prevenção à corrupção ou a Projeto preexistente com tal finalidade;

c) estipulação de garantias para: o pagamento de multa civil, o ressarcimento integral do dano e da transferência de bens, direitos e valores.

d) colaboração do agente com a investigação para elucidação e esclarecimento dos fatos em apuração - ato de improbidade administrativa ou qualquer ato praticado contra a administração pública - conforme objetivamente exigível no caso concreto.

Por outro lado, a inexistência de requisitos legais previstos na Lei de Improbidade Administrativa acerca do acordo de não persecução cível não representa óbice para sua aplicação. As resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público e o microssistema da tutela coletiva estabelecem os parâmetros para a celebração dos Acordos de não persecução cível.

E este acordo pode ser firmado ainda que o ato praticado seja doloso? Sim! Até porque na nova lei de improbidade, apenas os atos dolosos são punidos.

Ressalte-se que o acordo previsto na lei de improbidade, o supracitado acordo de não persecução cível, representa não apenas um importante instrumento de resolução consensual de conflito, como também um benefício ao autor do ato de improbidade administrativa, que não será processado por ato de improbidade administrativa, com as incertezas, custos e demora da tramitação da ação de improbidade¹⁴.

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Anna Dolores Barros de Oliveira Sá Malta - Conselheira do CARF (2ª Turma Extraordinária da 3ª seção de julgamentos). Professora Universitária dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Tributário e Administrativo. Mestre em Direito Público. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito do Terceiro Setor e Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Pesquisadora do GEDA- Grupo de Estudos em Direito CNPq/Universidade Católica de Pernambuco. Membro colaboradora da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/PE, seccional Recife. Advogada licenciada. Email: annadbarros@gmail.com

  1. ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes - Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
  2. Secretaria Geral da Presidência da República, Laís Figueiredo Lopes, Bianca dos Santos e Iara Rolnik Xavier (orgs.).Brasília: Governo Federal, 2014.
  3. Martins, Ricardo Marcondes in. MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda. (Coords). Parcerias com o terceiro setor: as inovações da Lei 13.019/14. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 263–298.
  4. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 - Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.
  5. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 - Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências.
  6. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 - Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa.
  7. Para Rodrigo Valgas a paralisia decisória ou o conhecido “apagão das canetas” é consequência do medo que os agentes públicos têm do controle externo por suas decisões, optando por nada decidirem para evitarem riscos decisórios. Não se trata de indecisão. Não há indecisão alguma. O que há é tecnicamente uma “não-decisão”, ou seja, adoção deliberada da técnica de nada decidir para não se expor ao risco decisório, com graves consequência à boa gestão pública. Por tal razão, esta técnica não pode ser assumida aberta e publicamente, pois se o for, também pode implicar em responsabilização por omissão. Daí porque o agente busca nada decidir ou mesmo delegar ou compartir com outros agentes públicos a atividade decisória, tudo visando adiar ou partilhar responsabilidades.
  8. “A expressão ‘Compliance’ se origina do verbo em inglês ‘to comply’, que significa, em síntese, satisfazer as imposições de ordem legal ou de ordem interna da empresa. Ao estudarmos com mais profundidade o tema, aprendemos que este não é um conceito de aplicação temporária para as Organizações se comportarem, visando conseguir cumprirexigências ou adequarem-se a instruções normativas, pelo contrário, as Organizações na atualidade devem respirar, viver e exalar em todas as suas atividades o institituto…” CARNEIRO, Claudio; SANTOS JUNIOR, Milton de Castro. Compliance e boa governança: pública e privada. Curitiba: Juruá, 2018, p. 23–24.
  9. É o que se tem assente na jurisprudência, conforme demonstram os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: REsp nº 1.171.017–PA, Rel. Min. Sérgio Kukina, j. em 25/02/14, REsp nº 1.405.748/RJ Rel. Min. Regina Helena Costa, j. em 21/05/15 e AgRg no ARE 574.500/PA. Rel. Min. Humberto Martins, j. un. 02/06/15.
  10. PEREZ FILHO, Augusto Martinez. O compliance na Administração Pública: Combate à Corrupção e Efetivação do Direito à Boa Administração. São Paulo: JH Mizuno, 2019.
  11. “A probidade constitui um dos mais fortes parâmetros de concretização do princípio da moralidade administrativa. Essa afirmação se extrai, sem grande esforço, dos inúmeros dispositivos constitucionais e legais que disciplinaram, no Brasil, a probidade no exercício da função pública. Esses dispositivos cujas raízes já se encontravam na Constituição Imperial de 1824, permeiam toda a Carta Constitucional de 1988”. Marrara, Thiago. Moralidade e Razoabilidade. In. MARRARA, Thiago. (Org.). Princípios de Direito Administrativo:legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo, Atlas, 2012, p. 166.
  12. Carlos Ari Sundfeld e Liandro Domingues destacam o desafio relacionado ao controle de políticas públicas sociais nas áreas de saúde e educação, considerando o paradigma da universalização de destacando o papel do poder judiciário no controle repassados pelos órgãos públicos que alimentam as ações sociais em sua ponta, concluindo que estamos vivendo a primeira era dos direitos direitos sociais à educação e à saúde e observando ainda a necessidade de uma agenda política e administrativa viável para desenvolvê-los. Sundfeld, Carlos Ari; Domingos, Liandro. In. SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO (Orgs.). Direito da Regulação e Políticas Públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 273–295.
  13. Existem decisões que entendem os atos que causam prejuízo ao erário como imprescritíveis.
  14. Nota técnica de n° 001/2020 emitida pelo CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DA DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA — CODPP do Ministério Público do Estado do Ceará.

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